Dentre as muitas coisas que tenho
lido, este texto, escrito pela Hannah Thuin, estudante de Direito da
Universidade de Brasília, me "representou" tanto e de tal forma que
não conseguiria recortá-lo ou modificá-lo de nenhuma forma. Segue, na íntegra.
A história que segue é suja,
densa – tão densa quanto o último respingo dela. A história que segue é
dantesca: retrato de um pesadelo acalorado pelo inferno. É uma história que
nada posso barganhar para esquecer; história que nada pude fazer para deter. É
uma história-memória sem cortes ou censuras – a linguagem é crua e dura.
Inadequada para quem com a verdade da realidade não pode ter. Não leia se este
último papel cabe em você.
Saía da aula. Tarde.
Estacionamento parcamente iluminado. Transeuntes inexistentes. Tudo era sombra
– à exceção da Lua cheia: seria ela a única a testemunhar.
Seiscentos metros; sessenta
passos: foi essa a distância percorrida antes que aquelas mãos segurassem firme
meu ombro. Segundos. Minha bolsa no chão. A chave do carro perdida na grama
próxima. Eu não conseguia gritar, mexer, fugir. Desespero. Enquanto uma mão
rasgava minha blusa, a outra expunha o pau duro para fora da calça. Quis
vomitar.
“Vadiazinha. Piranha. Vou te comer sua patricinha. Fica quietinha. Se abrir a boca, te mato.”
Sob o bafo dessas palavras,
despertei. Reagi, tentei escapar. A força dele era o dobro: eu quis ter voz
para morrer.
“Papai aqui vai te mostrar como se faz. Te foder toda. Te mostrar o que é um homem de verdade”.
Subjugou-me pela testosterona
dobrada: forçou-me os joelhos ao concreto; forçou-me a boca ao pau ereto.
Segurava-me pelos cabelos. Ia e voltava, com força, a cintura no meu rosto.
Aquele chicote estalando na minha garganta. Os pelos do escroto roçando nos
meus lábios.
Uma.
Duas.
Três.
Quatro.
Perdi as contas de quantas vezes sufoquei; de quantos tapas deferiu-me com aquelas mãos de monstro pelos desmaios que meu nojo ensaiou. Incansável. Só parou quando da minha voz saiu o vômito. Vômito que conheceu mais minha pele que o chão. Vômito que não interrompeu o animal; vômito que não o comoveu; vômito que não o impediu.
Uma.
Duas.
Três.
Quatro.
Perdi as contas de quantas vezes sufoquei; de quantos tapas deferiu-me com aquelas mãos de monstro pelos desmaios que meu nojo ensaiou. Incansável. Só parou quando da minha voz saiu o vômito. Vômito que conheceu mais minha pele que o chão. Vômito que não interrompeu o animal; vômito que não o comoveu; vômito que não o impediu.
“Sua porca. Escrota. Tá com nojinho? Agora vai ver o que é bom.”
Arrancou minha saia. Jogou-me ao
chão. Minhas bochechas esfoladas no asfalto. O corpo pesado daquele homem me
esmagando. Aquelas mesmas mãos monstruosas forçando caminho entre as minhas
pernas; aquele mesmo pau duro a me violar. Ao sangue do meu rosto arranhado, da
minha boca cortada, juntava-se o sangue do meu sexo machucado. Escorria a
resposta das minhas entranhas; traduzia em cor a dor que eu não conseguia
gritar. O bafo daquele homem estranho, sua respiração descontrolada aos pés do
meu ouvido. Aquela coisa asquerosa entrando e saindo de mim:
entrando
e
saindo;
entrando
e
saindo. Sob o meu pranto silencioso, o rosto desfigurado de tantas idas e vindas da pele naquele recorte duro de piche- o ritmo dos arranhões conduzidos pelo pau insaciável de um estranho. Além do choro, o sangue; além do sangue, o gozo. O gozo dele. Aquele sêmen todo a adoecer minhas partes; aquela porra a descer pelas minhas pernas: líquido branco, denso: morte.
Liberou seu peso sobre mim. Recolheu o pau murcho à braguilha fechada.
entrando
e
saindo;
entrando
e
saindo. Sob o meu pranto silencioso, o rosto desfigurado de tantas idas e vindas da pele naquele recorte duro de piche- o ritmo dos arranhões conduzidos pelo pau insaciável de um estranho. Além do choro, o sangue; além do sangue, o gozo. O gozo dele. Aquele sêmen todo a adoecer minhas partes; aquela porra a descer pelas minhas pernas: líquido branco, denso: morte.
Liberou seu peso sobre mim. Recolheu o pau murcho à braguilha fechada.
“A princesinha tá toda fodidinha. Já quer mais, né, putinha? Delícia.”
Dispensou um último tapa forte na
minha coxa – foi embora caminhando. Minhas mãos desceram à virilha; manchei-as
com aquela mistura de branco com vermelho: jamais unir-se-ão em rosa.
Não sei quanto tempo larguei-me ali. De pernas abertas. De roupa rasgada. De olhar perdido. Quando me encontraram, já era tarde. Tarde na hora do relógio, tarde na hora impossível de se evitar: ninguém mais poderia me salvar, minha vida acabara ali.
Dos procedimentos que se
seguiram- o IML, os infinitos exames, as tonalidades e prescrições de cada
caixa de remédio-, apenas participei do banho. Esfreguei minha pele com tanta
fúria, com tanto nojo, como se a carne daquele homem não fosse se desprender
nunca da minha – como se ele ainda estivesse ali. Não terminei enquanto outras
nuances minhas, além da dor, tornaram-se expostas. Aquela noite me tornou uma
pessoa quebrada: deixou a memória no corpo; usurpou a (c)alma.
Os únicos momentos em que eu
recobrava a vida, para logo perdê-la, afloravam ao longo do sono. O chão
áspero, o pau duro, o nojo, o sangue, o gozo dele escorrendo pelas minhas
pernas. Como se todo dia eu precisasse morrer um pouco mais. E morria.
Pesadelos sem rosto – assumiam um novo a cada abrir de olhos. Todos se
tornaram, assim, possíveis estupradores: o porteiro, os amigos, os vizinhos,
meus irmãos. Enxergava em todos eles a mesma repulsa. Ninguém escapava ao meu
medo; o medo não poupava sequer os Santos.
Em algum ponto, porém, estar
morta tornou-se insustentável. Não havia o que fazer quanto ao meu homicídio –
não acharam um nome a punir pelo estupro. A minha morte, contudo,
desenrolava-se em outra: mamãe. A culpa, tão injusta em escolher suas vítimas,
a atingiu, a adoeceu. Não foi por mim, portanto, que voltei – foi por ela. E,
ao voltar, percebi que não só por ela eu deveria renascer, mas por todas. Por
todas as mulheres. Por todas as mulheres que tiveram seus corpos violados e
suas almas furtadas, mutiladas, assassinadas.
Por todas as mulheres estupradas
ao percorrer o caminho entre a L2 e a UnB. Por todas as mulheres estupradas ao
pegar uma van de Copacabana para a Lapa. Por todas as mulheres estupradas após
serem intencionalmente drogadas por seus colegas de trabalho. Por todas as
mulheres enganadas por seus ídolos e, por eles, estupradas coletivamente. Por
todas as mulheres forçadas a transar com seus companheirxs- porque isso também
é estupro. Por todas as meninas abusadas por familiares ou pessoas próximas.
Por todas as mulheres e meninas que se calaram por medo, que não denunciaram,
que se sentiram culpadas porque assim, desde sempre, foram ensinadas pela sociedade.
Por todas as que não conseguiram carregar o peso dessa memória e encontraram,
no suicídio, a única possibilidade de redenção. Por todas as mulheres que não
renasceram; por todas as que sobreviveram; por todas as que, como eu, de alguma
maneira, hão de sobreviver (e renascer).
SOBRE AS
NUANCES DO MACHISMO
O estupro é um dos filhos
bastardos do machismo. Bastardo porque deste herda os traços, mas não o
reconhecimento. O machismo é a raiz podre que germina em solo Argiloso; é o
início do espinho que emerge na Terra Roxa; é o calvário que se instala no
Calcário. O machismo está em toda parte. Enraizado. Reproduzindo livremente
seus podres frutos e alimentando, com eles, tradições e poderes apodrecidos. O
machismo veste muitas cores, muitas modas, muitos nomes. O machismo é a nossa
crítica à saia curta e ao decote; o machismo é a nossa repulsa à puta e
concomitante glorificação do conceito menina-santa-songa-monga. O machismo é a
crucificação do aborto travestido de religião; é, também, a proibição da ordenação
da mulher. O machismo é árvore de muitos galhos.
O machismo não me deixa jogar
bola, porque futebol é coisa de homem; não me deixa conduzir um carro, porque
mulher no volante é barbeira; não me deixa ser a capa de um jornal de finanças,
sorridente e bem sucedida, porque esse papel milenarmente cabe, tão somente, ao
homem (branco). O machismo não deixa que eu me expresse, que eu marche pelos
meus direitos, que eu exponha meu corpo como eu quiser.
O machismo não deixa que eu
escolha minha foda, a minha companheira no lugar de companheiro – se quero ou
não ter filhos. O machismo não me deixa ser mãe solteira. O machismo não
deixa que ela ganhe mais que ele ou que ele cuide da casa e auxilie-a nas
responsabilidades domésticas. O machismo não deixa que a mulher seja o que é:
forte. Ele tenta o tempo todo submetê-la à obediência, à submissão, à
resignação.
O machismo, contudo, sabe ser
generoso – abre “exceções”. O machismo permite objetificar o corpo da mulher
para que seja essa a imagem impulsionadora das vendas de carros e de cervejas.
Permite ao marido ser convocado em propagandas toscas de rádio a bancar o
consumismo clichê feminino – resume a mulher ao crédito. Permite e reforça a
exigência das curvas sempre exatas, da roupa comportada, das unhas feitas, do
cabelo liso e escovado. Permite que o cavalheirismo seja visto como gentileza
dele e o sexo como obrigação servil dela. Permite que ele faça da infidelidade
um estilo de vida e do pênis um instrumento de reconhecimento e poder. O
machismo permite que a apologia ao estupro em uma recepção de vestibular seja
vista como um caso isolado de “dois babacas” dessintonizados com o curso e não
como um problema institucional que ultrapassa os muros da Universidade- o
espaço acadêmico hodiernamente (e infelizmente) ainda reproduz, sem a
necessária reflexão, os ecos e ensinamentos que vêm de antes, que vieram e vêm
lá de fora. O machismo permite que a hipocrisia se diga moral e, em um cuspe,
agrida as mulheres que marcham por um necessário despertar; permite, inclusive,
normatizar o estupro, assegurando, àquele líquido branco, a hospedagem no
útero, sem questionar a existência de um prévio aceite: se ela disse sim ou se
disse não, para o machismo, tanto faz.
Engana-se
quem pensa ser o machismo opressor apenas do feminino. Senhor feudal, pai, filho e herdeiro das tradições
e do conservadorismo, o machismo é poder corrupto e mecanismo de exclusão que
se pretende perpétuo. É em nome dele e por ele que se prega e legitima o homem
branco como “the choosed one” para dominar a tudo e a todos.
É em nome
dele e por ele que se mascara o fundamentalismo de democracia e a intolerância
de religião. É ele
quem dilata as nossas glotes e permite um indigesto Feliciano permanecer na
presidência da Comissão de Direitos Humanos. É ele que o impede o Ministério da
Saúde de veicular uma campanha em que afirma que prostituta também é gente e é
gente feliz. É ele quem veta um kit que prega o respeito e a compreensão da
sexualidade que escapa aos padrões normativos, mas permite e incentiva, com
recursos públicos, a distribuição de uma cartilha que, não contente em veicular
a homofobia, relativiza o estupro, personificando o gozo do estuprador em uma
vida a ser protegida. É ele que condena as rupturas, que agride àquela que se
insurge contra o sistema, que demoniza os seus símbolos.
É em nome dele e não de Deus que se pratica o racismo, a homofobia, o
feminicídio, a opressão de classes. É ele quem cerceia com normas, padrões e
pecados intransigentes o próprio existir dos sujeitos.
Não sejamos ingênuos nem tenhamos piedade com quem nunca nos
poupou. Não se combate o machismo com afagos na cabeça e conversas baixas.
Não se combate o machismo com a manutenção dos símbolos nem com o silêncio de
quem a tudo assiste inerte e, assim, consente. Não se combate o machismo
marchando em fila indiana e batendo continência para a hipocrisia. É preciso
peito. Esteja ele nu ou pintado – a coragem de impô-lo traduz-se na ausência de
panos, sem temer o pudor do moralismo alheio. Não existe paz sob a
regência do medo. Não existe democracia quando a metade do povo, dita
ironicamente de minoria – cracia-, é feita de demo indialogável e
invisibilizado pelas bandeiras monocromáticas do branco classe média hétero
“religioso”. É muito fácil criar pecados e interpretar de maneira viciada o
calçado do Outro, difícil é dispor-se à alteridade de enxergá-lo para além dos
estigmas e da herança dos frutos podres que desde cedo nos são dados como
alimento e como instrução.
Que o senso comum, a homofobia, o
racismo, o feminicídio, a opressão de classes, a xenofobia, que todos esses
rostos do machismo se tornem, a cada dia mais, os verdadeiros outsiders. Sejam
eles os deslocados, os excluídos, os eliminados. Que a gente desperte os
sentidos e a vontade para entender e enfrentar o verdadeiro inimigo e seu
exército de formas, linguagens, poderes, pessoas. Que a nossa revolução comece em nós mas em nós não termine e não se
contenha; que se expanda, que invada a rua, o comércio; que barulhe os ouvidos
até que seja verdadeiramente escutada, sentida, pensada.
Há muito para fazer: há um tanto
de dureza e concreto para demolir. Os caminhos, contudo, estão aí, abertos. Há um incômodo com potência para ser
mudança. Há gente muito boa na rua pronta para o novo. Que a gente não
perca o embalo e nem a coragem e, se por ventura, faltar o norte, que a gente
tenha o gosto do nojo na memória: aquele líquido branco banhado de sangue e de
pranto – gozo egoísta, monstruoso.
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